Prazos de validade

Eu sempre tive um hábito meio mórbido de fazer amigos, mas do qual ainda não consegui me livrar (embora esteja tentando).

Já há alguns anos, sempre na época dos vestibulares, eu me dirijo a algum local de prova e fico na frente do portão, junto com os vendedores de água e baganas e os parentes dos candidatos que ficam do lado de fora trocando lero. A diferença é que não vendo nada nem sou parente de ninguém. Observo todos os candidatos passando pelos portões, até que vai se aproximando a hora-limite de entrada e o clima começa a ficar tenso: será que alguém vai perder a prova?

Quando os responsáveis pelo fechamento dos portões começam a se movimentar, a tensão se espalha. Sempre há candidatos retardatários vindo correndo no final da rua, e a multidão em coro toma para si a perseverança desses sujeitos atrasados e começam a lançar gritos e gritos de alerta.

Corre!, corre!, vai fechar!

Quase sempre o candidato consegue entrar, graças à benevolência do fiscal que retarda o trancamento dos portões. Mas sempre há alguém que fica de fora, e então eu - que sempre assisto entusiasmado a esse pequeno show urbano - começo a agir.

Lembro-me de uma vez que uma garota chegou e não pôde entrar por questão de segundos. Segundos mesmo. Desde o início da leitura dessa frase até esse momento: esse foi o tempo entre o fechamento do portão e a chegada da garota, uma mulata baixinha, que só não caiu no choro na mesma hora porque aparentemente não lhe havia caído a ficha. Assim que a garota literalmente esbarrou no portão - ao som consolador de dezenas de vozes -, ela lá ficou por alguns segundos, inerte, sem voz sequer para pedir inutilmente ao fiscal que a deixasse entrar; então foi saindo dali, como se tendo uma vertigem ainda apoiando-se no portão e, logo que este acabou, apoiando-se no muro. Da parte das pessoas, após o choque inicial, já se ouviam algumas risadinhas e umas provocações indiretas, do tipo "a única coisa que ela tem que fazer no ano é essa prova, e chega atrasada". Estavam se alimentando da desgraça alheia.

A moreninha andou uns duzentos metros, saiu do meio da multidão, e então sentou no chão encostando-se na parede salpicada do muro, com um semblante tão pálido que parecia que não havia respirado naqueles minutos. Eu comprei um copo de água mineral e me aproximei, oferecendo e sugerindo-lhe que ficasse calma. Ela aceitou, realmente não tinha fôlego, mas aos poucos foi se recuperando e a conversa, no início tortuosa, foi fluindo melhor. Assim como conheci essa garota, conheci também outras pessoas. Ficava sempre nas portas dos locais de provas, esperando os retardatários, aqueles que (talvez pela primeira vez) sentem o peso de 30 segundos, de um minuto, em suas vidas. Conversar no início era sempre difícil - muitas vezes, depois da tensão inicial a pessoa caía em prantos e a conversa se tornava por algum tempo impossível; porém, eram esses casos que eu mais gostava -, no entanto aos poucos a comunicação evoluía.

Em geral, eu conhecia mais garotas nesses locais. O papo com elas se desenvolvia sempre com mais facilidade, porque elas exprimem mais as emoções. É até uma oportunidade para eu testar tudo que aprendi autodidaticamente com tantos livros de psicologia. Só que também já conheci alguns caras. Um deles, o único com quem ainda mantenho algum parco contato, era meio metido a surfista. Nunca teve nenhuma meta na vida que passasse pelo vestibular, mas não deixou de ser um baque ser barrado no portão do local de prova. Raros são os que reagem normalmente. Alguns são até insossos, mas também sentem.

A minha última namorada, inclusive, eu conheci na porta do então Cefet-RN. Logo após ela ter sido barrada, fomos até o bosque que há ali perto e lá lanchamos e conversamos o dia todo, e no dia seguinte até umas dez semanas depois estávamos namorando, ainda que não fosse um namoro propriamente dito, mas que seja: namoros não necessariamente precisam ser tais como são propriamente ditos.

Os desatentos pensariam que eu gosto de ver as desgraças alheias; não, não gosto. Se dependesse de mim, não sofreriam desgraças quaisquer. É apenas que a pessoa nesta ocasião está sensibilizada, e de modo geral ela, no momento posterior a um tropeço desses, sempre esboça qualquer característica fundante ignorada, talvez alguns defeitos de personalidade desconhecidos ou mesmo virtudes até ali reprimidas. Eu vislumbro sempre este último caso.

Apesar de tudo, nenhuma dessas amizades durou muito tempo. Tratavam-se de relações cujo elo de ligação era a desgraça, o fracasso, a tensão. Eu gostava de conhecer a pessoa pelo que ela tinha de irresponsável. E, sobretudo, gostava de conhecê-la num momento de total ausência de humor, já que não tenho muito saco para besteirol. Só que após os primeiros dias, ou as primeiras semanas (quando sai o resultado do vestibular, sempre bate de novo aquela crise nos retardatários), elas sempre conseguem "superar" o problema. Suas vidas, passam, então, a se permear de novas boas coisas. As garotas começam a querer que eu vá com elas para uma balada insossa ou passar um fim-de-semana na casa de praia com sua turma, os caras começam a me chamar para churrascadas ou para jogos de futebol. A socialização a dois enterra-se, e a amizade só se sustentaria se eu topasse participar desses programas coletivos e chatos demais. Então eu desisto, todas as vezes, de maneira que essas relações nunca ultrapassam a barreira dos três meses. Depois, vem a espera por novas oportunidades.

Mas isso cansa.

Neste final de semana, bem que acordei com aquela velha vontade de fazer brotar mais um amigo e uma namorada; no entanto, assim que pensei no vazio que emergiria daqui a uns três meses - justo quando eu já estivesse desacostumado com ele -, percebi que valeria mais a pena voltar a dormir.

Autor: Leon K. Nunes.
Leon K. Nunes tem 26 anos, é professor de Geografia e escritor. Autor do livro Contos Subterrâneos, reunindo material inédito em parceria com os gaúchos E. P. Freitas e Ivo Ávila.
Conheça seu trabalho no Blog Literatura Vil.


1 comentários:

Cris Medeiros disse...

É um jeito bem peculiar mesmo de fazer amizade... rs. Lembrou um parente que tinha que ia em enterros com esse mesmo objetivo. Cada um de nós temos as nossas estranhezas... rs

Beijocas