Saudações. Veja bem, a minha identidade não interessa. De que interessará saber se sou uma mulher ou um homem? Tenha-me apenas como alguém que conta uma história. Sim, história, não estória. Contarei a história de Carolina, a mulher mais terrível que já passou por essa Terra. A mãe de Carolina contava que a primeira amostra da personalidade singular de sua filha foi logo ao nascer, quando defecou nas mãos do médico que fez seu parto. Carolina rebatia, com a seriedade de sempre, que aquela tinha sido sua primeira forma de se rebelar contra o mundo, foi a sua forma de dizer “este mundo é uma merda!”.
Os anos se passaram e Carolina cresceu, tornou-se uma criança relativamente comum, do tipo que não desperta atenção à primeira vista, mas quando a pequena falava, todos se calavam, e assim permaneciam até que o estarrecimento passasse. Sim, era isso que Carolina causava nas pessoas: estarrecimento. Desde muito pequena Carolina demonstrava uma seriedade assustadora, uma visão de mundo pessimista demais para uma menininha de sua idade. Não tinha amigos. Enquanto suas vizinhas da mesma idade que a sua brincavam alegremente com suas bonecas e todas aquelas coisas de doninha de casa, Carolina preferia ler livros e escrever. Os manuscritos da pequena Carolina são assustadores. Quando os leio, todos os pelos do meu corpo se eriçam. “O mundo é uma merda...”, “Eu não sei bem o que há comigo, mas tudo nesse mundo é tão sem graça, tão sem verdade...”, “Minha mãe diz que eu deveria pedir ao Papai do Céu pra me tirar toda essa tristeza que desde sempre existe em mim, mas eu peço tanto, e a tristeza continua aqui, do mesmo jeito...”, “Sinto falta do meu pai, é estranho pois eu nunca o vi, nunca o abracei, mas eu sinto a sua tanta falta...”.
Mais um tempo se passou, Carolina transformou-se numa jovem frustrada, triste e desesperançada. Não tinha motivos, alguns diziam. Outros, a maioria, dizia que esse vazio sentido por Carolina era a falta do pai. O pai de Carolina morrera dias antes de seu nascimento, de um infarto fulminante. Por pouco, a mãe e a Carolina não morreram também, pois o choque para a primeira foi extremamente desconcertante. Essas duas se salvaram por um milagre, e era daí que a fé da mãe de Carolina provinha. Já Carolina... Sempre tão cética, sempre tão triste, sempre com um vazio imenso no peito. É verdade que ela sentia uma falta gigantesca do pai, mas o motivo pelo qual ela se sentia tão estranha e desencaixada nesse mundo era outro que nem ela sabia bem. Mas era outro. Ela se entristecia com a realidade do mundo, com tanta gente morrendo de fome, com tanta gente se matando por bobagem, com tanta hipocrisia, com tanta futilidade. Carolina não entendia como as pessoas podiam ver tudo isso diariamente e dormirem tranquilas, e o pior, se dizerem felizes. Ela não escondia de ninguém o quanto era frustrante viver. Sim, ela achava deprimente essa vida. Alguns achavam que ela sofria de algum sério tipo de transtorno mental. Ela achava graça disso, quer dizer, era uma das raras coisas que a faziam rir.
“As pessoas não entendem, e nem nunca entenderão. Nasci com um sério defeito de fabricação. Eu não sei ver tudo desmoronando ao meu redor e me manter feliz e tranquila só porque ainda tenho um teto sobre mim. Importo-me com as pessoas. Importo-me com o rumo que o mundo vem tomando, e que horrível rumo! Sabe aquela coisa de que uma andorinha só não faz verão? É uma cruel verdade. Eu sou uma pobre andorinha de coração frágil, de sonhos bonitos, sonhos de paz para o mundo e amor entre os povos, mas sozinha eu não consigo. Tentei, juro que tentei me adaptar a esse mundo, asseguro-lhe que tentei alertar aos viventes desse lugar maluco de que viver assim, indiferente a tudo e a todos, será a destruição deles. Ou a minha. Não aguentei ver tanta desgraça. Não aguentei a dor diária no coração. Não aguentei viver. Se depois do que pretendo fazer, intitularem-me covarde e fraca, não tem importância. Nada terá mais importância. Se perguntarem quem fui, diga que fui uma neurótica, uma louca, uma extraterrestre que caiu aqui por acaso, mas que já foi embora. E para sempre.”
Essas foram as últimas palavras de Carolina, escritas numa folha de caderno que até hoje guardo comigo. Faz longos dez anos que Carolina pulou da pedra mais alta. Carolina foi para uma outra dimensão, uma outra vida, na qual eu espero com toda a fé que existe em mim que ela tenha se adaptado, se encaixado, que tenha encontrado gente de alma tão doce e pura quanto a dela. Não julgue Carolina, ela não é o que eu chamaria de fraca e covarde. Ela só nasceu sensível demais, incapaz de fingir e ignorar. Viver era pesado demais para a minha Carolina, pesado demais. Covarde, leitores, é aquele que prefere sobreviver na merda a mover seus músculos e sair do buraco cheio de fezes onde se encontra e mudar algo em sua vida, para torná-la digna. Fraco é quem vê o seu próximo definhar e sequer estende a mão para ajudá-lo. O mundo é podre porque as pessoas são uma merda. Sim, isso é o extremo do pessimismo. É que o ser humano não presta e nunca prestará. Eu não presto. Eu sou podre. Porque infelizmente eu consigo dissimular, ignorar, fingir que está tudo bem quando na verdade o mundo sucumbe a terríveis crises. Carolina não, ela não era humana. Era algo que eu não sei denominar, algo tão único e sincero, algo tão genuíno que chego a chorar só de pensar nela. Ah, minha joia Carolina, nunca adquirirei sabedoria quanto a que você adquiriu em apenas 17 anos de vida!
Os anos se passaram e Carolina cresceu, tornou-se uma criança relativamente comum, do tipo que não desperta atenção à primeira vista, mas quando a pequena falava, todos se calavam, e assim permaneciam até que o estarrecimento passasse. Sim, era isso que Carolina causava nas pessoas: estarrecimento. Desde muito pequena Carolina demonstrava uma seriedade assustadora, uma visão de mundo pessimista demais para uma menininha de sua idade. Não tinha amigos. Enquanto suas vizinhas da mesma idade que a sua brincavam alegremente com suas bonecas e todas aquelas coisas de doninha de casa, Carolina preferia ler livros e escrever. Os manuscritos da pequena Carolina são assustadores. Quando os leio, todos os pelos do meu corpo se eriçam. “O mundo é uma merda...”, “Eu não sei bem o que há comigo, mas tudo nesse mundo é tão sem graça, tão sem verdade...”, “Minha mãe diz que eu deveria pedir ao Papai do Céu pra me tirar toda essa tristeza que desde sempre existe em mim, mas eu peço tanto, e a tristeza continua aqui, do mesmo jeito...”, “Sinto falta do meu pai, é estranho pois eu nunca o vi, nunca o abracei, mas eu sinto a sua tanta falta...”.
Mais um tempo se passou, Carolina transformou-se numa jovem frustrada, triste e desesperançada. Não tinha motivos, alguns diziam. Outros, a maioria, dizia que esse vazio sentido por Carolina era a falta do pai. O pai de Carolina morrera dias antes de seu nascimento, de um infarto fulminante. Por pouco, a mãe e a Carolina não morreram também, pois o choque para a primeira foi extremamente desconcertante. Essas duas se salvaram por um milagre, e era daí que a fé da mãe de Carolina provinha. Já Carolina... Sempre tão cética, sempre tão triste, sempre com um vazio imenso no peito. É verdade que ela sentia uma falta gigantesca do pai, mas o motivo pelo qual ela se sentia tão estranha e desencaixada nesse mundo era outro que nem ela sabia bem. Mas era outro. Ela se entristecia com a realidade do mundo, com tanta gente morrendo de fome, com tanta gente se matando por bobagem, com tanta hipocrisia, com tanta futilidade. Carolina não entendia como as pessoas podiam ver tudo isso diariamente e dormirem tranquilas, e o pior, se dizerem felizes. Ela não escondia de ninguém o quanto era frustrante viver. Sim, ela achava deprimente essa vida. Alguns achavam que ela sofria de algum sério tipo de transtorno mental. Ela achava graça disso, quer dizer, era uma das raras coisas que a faziam rir.
“As pessoas não entendem, e nem nunca entenderão. Nasci com um sério defeito de fabricação. Eu não sei ver tudo desmoronando ao meu redor e me manter feliz e tranquila só porque ainda tenho um teto sobre mim. Importo-me com as pessoas. Importo-me com o rumo que o mundo vem tomando, e que horrível rumo! Sabe aquela coisa de que uma andorinha só não faz verão? É uma cruel verdade. Eu sou uma pobre andorinha de coração frágil, de sonhos bonitos, sonhos de paz para o mundo e amor entre os povos, mas sozinha eu não consigo. Tentei, juro que tentei me adaptar a esse mundo, asseguro-lhe que tentei alertar aos viventes desse lugar maluco de que viver assim, indiferente a tudo e a todos, será a destruição deles. Ou a minha. Não aguentei ver tanta desgraça. Não aguentei a dor diária no coração. Não aguentei viver. Se depois do que pretendo fazer, intitularem-me covarde e fraca, não tem importância. Nada terá mais importância. Se perguntarem quem fui, diga que fui uma neurótica, uma louca, uma extraterrestre que caiu aqui por acaso, mas que já foi embora. E para sempre.”
Essas foram as últimas palavras de Carolina, escritas numa folha de caderno que até hoje guardo comigo. Faz longos dez anos que Carolina pulou da pedra mais alta. Carolina foi para uma outra dimensão, uma outra vida, na qual eu espero com toda a fé que existe em mim que ela tenha se adaptado, se encaixado, que tenha encontrado gente de alma tão doce e pura quanto a dela. Não julgue Carolina, ela não é o que eu chamaria de fraca e covarde. Ela só nasceu sensível demais, incapaz de fingir e ignorar. Viver era pesado demais para a minha Carolina, pesado demais. Covarde, leitores, é aquele que prefere sobreviver na merda a mover seus músculos e sair do buraco cheio de fezes onde se encontra e mudar algo em sua vida, para torná-la digna. Fraco é quem vê o seu próximo definhar e sequer estende a mão para ajudá-lo. O mundo é podre porque as pessoas são uma merda. Sim, isso é o extremo do pessimismo. É que o ser humano não presta e nunca prestará. Eu não presto. Eu sou podre. Porque infelizmente eu consigo dissimular, ignorar, fingir que está tudo bem quando na verdade o mundo sucumbe a terríveis crises. Carolina não, ela não era humana. Era algo que eu não sei denominar, algo tão único e sincero, algo tão genuíno que chego a chorar só de pensar nela. Ah, minha joia Carolina, nunca adquirirei sabedoria quanto a que você adquiriu em apenas 17 anos de vida!
Erica Ferro
* * *
Da série "contos mal-contados".
Espero que reflitam sobre essas mal traçadas linhas,
mas que nas entrelinhas se encontram belas lições.
Um abraço da @ericona.
Até próximo sábado!
4 comentários:
Bem interessante o conto. Dizem que em tudo que escrevemos sempre tem muita da gente. E eu acho que isso procede.
De qualquer maneira eu conheço "um Carolino". Ele parece demais com a Carolina.
Beijocas
O mundo é mesmo um lugar difícil de se viver!!! Erica vc arrasou \o/
Érica, devo concordar com o que a seguidora acima disse que quando escrevemos algo, colocamos muito de nós em nossos escritos. Também me vejo um pouco como a Carolina por vezes, no entanto, não podemos nos deixar arrasar e pensar que tal pessimismo seja uma grande sabedoria. É um tipo de sabedoria, não discordo. Contanto, não é a única.
Você escreve bem. Devia reunir seus contos em um livro.
Nunca conheci uma Carolina, mas adoraria. Eu já fui um pouco Carolina, mas aprendi a continuar com a venda nos olhos, e seguir a minha vida! Admirei a personalidade dela.
Final triste!
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