Precisa-se de um escritor

Queira receber expressão sentidos pêsames 

Expressão sentidos? Isto não está bom não. Vamos tentar de novo.

Aceite meu pesaroso abraço

Pesaroso abraço é de amargar. Que tal sincero pesar?

Venho manifestar sincero pesar


Não vai. Tenho de reconhecer que está acima da minha competência. No entanto, sou um escritor. Há anos e anos não faço outra coisa a não ser juntar palavras, e o resultado aí está: depois de toda uma vida dedicada à literatura, dezessete livros publicados, milhares de crônicas, contos, artigos, reportagens, comentários, notas, textos e roteiros, tenho de admitir a minha definitiva incapacidade de redigir um simples telegrama de pêsames. 
Não se falando na compulsiva idiotice que me leva a escrever pêsames com z, para em seguida verificar pela milésima vez no dicionários que é com s, como eu desconfiava. Talvez porque com z os pêsames pareçam mais sinceros. 

Queira receber os pêsames mais sinceros

Encontro na autobiografia de Malcolm Muggeridge semelhante desalento em face da quantidade do que ele chama de "produto pessoal bruto" do escritor. Afirma que, depois de milhares de anos-luz no inferno ou no céu ou no purgatório, se lhe perguntarem como era a vida na terra, dirá que era uma folha de papel em branco numa máquina de escrever e tendo de ser coberta com palavras: não amanhã, nem na próxima semana ou no próximo ano: agora
Tal como eu neste momento.
Mais modestamente, sinto que minha vida de escritor é como a de uma cozinheira que, nem bem acabou de lavar as panelas e arrumar a cozinha depois do almoço, tem que começar tudo de novo para fazer o jantar. 
Pois que o escritor inglês trabalhe um pouco em meu lugar:
"Observando esta monstruosa cachoeira de palavras tão seguidamente solicitadas e produzidas, confesso que elas significam para mim uma vida perdida. Possibilidades vagamente vislumbradas que nunca de realizaram. Uma luz que lampeja para logo desaparecer. Algumas coisa vagamente apreendida, como uma música distante ou um perfume indefinível; alguma coisa cheia de encantamento e promessas de êxtase. Muito, muito distante, no entanto próxima; no extremo limite do tempo e do espaço, no entanto na palma da minha mão. Em qualquer caso, tanto perdida na mais remota distância como ao meu alcance - inatingível. Nenhuma luz mais duradoura que a de um fósforo aceso numa caverna escura. Nenhum êxtase a experimentar - somente uma porta que se fecha, e o eco de passos cada vez mais fracos descendo uma escada de pedra."
Ecos de passos cada vez mais fracos descendo uma escada de pedra... Como a lembrança de alguém que morreu. 
De alguém que morreu e para cuja família não consigo sequer compor um telegrama de pêsames.


O contínuo abriu a porta da sala de Otto Lara Resende e, ao vê-lo escrevendo velozmente na máquina, espantou-se:
- Uê, doutor Otto, o senhor tem redação própria?
Pois é isto: me digo escritor e não tenho redação própria.
Agora vai de qualquer maneira:

Queira aceitar votos pesar abraço amigo

Tendo atingido essa admirável concisão, o telegrama aí está, é só enviar. Em vez disso, resolvo partir para o cartão. Além de ser manuscrito, o que é mais delicado, o cartão se presta a uma redação fluente, espontânea, como deve ser a de um escritor que exprime seu pesar pela morte de alguém:

Venho por meio deste exprimir meu pesar

Depois de rasgar meia dúzia de cartões, e convencido além do mais de que meus pêsames podem ser sinceros mas minha letra é ilegível, retorno furiosamente ao telegrama:

Sinceros pêsames

Duas palavras apenas, quer manifestação mais expressiva que esta? Assino e envio, antes que sofra novo ataque de oligofrenia vocabular.


Outro dia li uma crônica de García Márquez na qual, para meu consolo, ele afirma literalmente: "no seria capaz de escribir un telegrama de felicitación ni una carta de pésame sin reventarme el hígado durante una semana". E passa a falar na alhada em que se meteu. O homem já produziu uma obra admirável, é autor de pelo menos um romance imortal, já conquistou o Prêmio Nobel - que é que ainda tinha que inventar para si o encargo de uma crônica semanal? Está passando um alegre e divertido fim de semana com um amigo, quando de repente lhe vem a lembrança com uma pontada no coração: no dia seguinte tem que enviar sua matéria para o jornal. Telegrafo amanhã ao diretor dizendo que essa semana não tem - decide ele: não foi possível escrever. Mas pela manhã a consciência lhe dói, o desafio se impõe: escrever de qualquer maneira. Escrever o quê? Tamanha é a sua incapacidade de escrever o que quer que seja (talvez até o telegrama) que ele passa a desejar que caia do céu alguém capaz de escrever para ele.
Um dia foi à casa de Luiz Alcoriza, com quem deveria trabalhar num roteiro para cinema.Alcoriza é conhecido escritor mexicano, autor de roteiros para filmes de Buñuel. Encontrou-o às dez da manhã consternado porque a cozinheira lhe havia pedido o favor de escrever uma carta para o diretor da Previdência Social. Achando que aquilo seria coisa de meia hora, sentara-se à máquina e agora ali estava, furioso, cercado de papéis amassados, nos quais não havia senão variações de uma só frase apenas principiada: venho por meio desta informar-lhe... Esta tem por fim solicitar... Os dois escritores juntaram seus esforços e ao fim de três horas ainda continuavam fazendo rascunhos e rasgando papel freneticamente, tomando genebra e já meio bêbados, sem chegar a nenhum resultado. À tarde, quando a cozinheira veio buscar a carta, tiveram que confessar, desconsolados, que não eram capazes de escrevê-la. Mas é fácil - explicou ela, humilde: olhem só. E começou a improvisar a carta com tamanha precisão que Alcoriza mal podia acompanhá-la, batendo à máquina o que a mulher ditava. Então García Márquez descobriu nela o escritor que lhe faltava para ser um homem feliz.
Não mereço tanto.

Bom, eu amo o Sabino, como muitos sabem, e cedo ou tarde eu ia colocar uma crônica dele nos textos alheios. Não tinha como não fazer. E quem de nós, blogueiros, que muitas vezes escrevemos com uma facilidade tremenda, não teve dificuldade de escrever algo simples ao menos uma vez? Demorei algum tempo pra digitar a crônica aqui, no meio de uma coisa e outra, já que não havia ela disponível na internet, mas creio que valeu a pena. Aliás, pra mim qualquer texto do Sabino vale ser digitado, por maior que seja. Gostaram? Bom, nos vemos segunda, meus caros. Até mais ver!

4 comentários:

Érica Ferro disse...

Também adoro Sabino. E essa crônica, então, retrata bem meus dias atuais. Não tenho conseguido escrever um pequeno texto sequer. Tenho sentido uma dificuldade enorme em organizar as ideias em textos. Ainda bem que é fase, passa. Que os tempos de escrever facilmente voltem logo!

Adorei a crônica, Seerig.

Marina Carla disse...

Sabino tinha esse dom de transformar pequenos acontecimentos do cotidiano em crônicas memoráveis.
Embora este texto, eu ainda não conhecesse. Adorei.

Tati Tosta disse...

Também adoro o Sabino e sim Gostado! Sempre!

Unknown disse...

Quase não tenho lido Sabino. No entanto este texto alheio (do Sabino)é uma delícia, gostei muito! Já tem um tempão que não público nenhum de meus textos... então esta leitura que fiz no vosso blog foi de grande valia.
Abraço para vocÊs gurias arretadas...