Uma coleção



Geralmente os donos de bibliotecas avultadas são mais colecionadores do que propriamente leitores. Eu, por exemplo. Se tivesse lido todos os livros de minha biblioteca, digo, de minha coleção, seria um dos sete sábios de Alexandria. (Ou seriam oito?)

Na dúvida, talvez seja mais prudente suprimir o número, mudando a frase para "um dos sábios de Alexandria". Assim, como amigo de Platão, mas, sobretudo, da verdade, fico com a consciência em paz, deixando de veicular uma incerteza aritmética.

Dizia-se que Mário de Andrade não emprestava livros, permitindo, entretanto, que o interessado frequentasse sua biblioteca para ler o que bem entendesse, apenas sob condição de não subtrair o volume.

Certa vez, no Praia Bar (Flamengo - RJ - 1937), perguntei ao autor de Macunaíma se isso era lenda ou era verdade. Ele respondeu que era verdade, oferecendo-me sua biblioteca, mediante o referido regulamento, se algum dia eu viesse a dar os costados na "pauliceia desvairada".

Outra história sobre a biblioteca do grande escritor: ele nem sequer abria os livros que lhe eram entregues ou remetidos, com dedicatória, pelos autores. Comprava um novo exemplar da obra, lendo-a e, geralmente, anotando-a, mesmo porque fazia crítica literária, em parte reunida no Empalhador de Passarinho. O livro que recebia do autor era mantido intacto nas estantes, formando duplicada, lado a lado, com o exemplar por ele comprado para leitura e anotação.

O Brasil talvez seja o único país em que tomar livro emprestado e deixar de devolvê-lo não é considerado roubo sujeito a processo por apropriação indébita. O colecionador de livros, categoria de que faço parte, pois precisaria de uns 200 anos para ler a minha biblioteca, leva grande vantagem a esse respeito, partindo-se do princípio de que objeto de coleção não se empresta, nem se dá, permutando-se, quando muito, e, ainda assim, no caso de haver duplicatas.

Disponho de várias, por sinal. É que muitas vezes fica mais fácil comprar um novo exemplar do que encontrá-lo na minha coleção, cujas prateleiras, com seus volumes em filas duplas e alguns atravancados em cima do móvel, tornam proibitivas as consultas a pelo menos metade da biblioteca, existindo, ainda, pelos cantos, livros empilhados nas mais diversas formas geométricas, que ruiriam com a retirada de apenas uma peça das engenhosas construções. Deve ser pelo mesmo motivo que as pirâmides do Egito se mantêm de pé.

O colecionados de livros em escala maníaca, como é meu caso, leva outra vantagem, sobretudo se conservar na maior desordem, como também é meu caso. Jamais conseguindo encontrar e colocar a seu alcance, para eventuais consultas, as fontes bibliográficas de que dispõe, sem poder usá-las, fica habilitado a transferir, indefinidamente, todos os projetos literários, justificando, assim, a eterna e cômoda condição de autor inédito. 

Ainda bem que não me encontro sozinho nesta categoria autoral. Tenho um ilustre confrade que vive dizendo que, depois de classificar e fichar sua enorme biblioteca, vai produzir diversas obras primas no campo das ciências sociais aplicadas à problemática rio-grandense, de Sepé Tiaraju a Honório Lemes.

Por falar no Tropeiro da Liberdade, li outro dia a frase que lhe foi atribuída, dizendo que o Rio Grande "precisava de leis que governem os homens e não de homens que governem as leis". Como conheci de perto o velho Honório, na casa de meu pai, tendo lhe alcançado a cuia, muitas vezes, em rodas de mate de que fazia parte e, assim, acompanhando sua palestra de homem rústico e iletrado, acho a frase muito intelectualizada para ter saído de sua boca, na forma em que está burilada.

Gostaria, por isso, de descobrir a fonte bibliográfica de onde essa frase foi retirada. Talvez consiga, sem precisar sair de casa, mas só depois de dispor as coisas a poder consultar minha coleção de livros. 

Como o problema se resume na falta de espaço, viria a calhar um financiamento da Caixa Econômica, para aumentar meu modesto tugúrio, mas, muito mal acostumado pelo sistema anterior, que apesar da Tabela Price, era uma espécia de doação, não de financiamento, acho que jamais terei suficiente coragem para enfrentar a correção monetária e demais regras de atual política imobiliária. 

(Carlos Reverbel - Texto presente no livro Barco de Papel)

4 comentários:

Érica Ferro disse...

"O Brasil talvez seja o único país em que tomar livro emprestado e deixar de devolvê-lo não é considerado roubo sujeito a processo por apropriação indébita. O colecionador de livros, categoria de que faço parte, pois precisaria de uns 200 anos para ler a minha biblioteca, leva grande vantagem a esse respeito, partindo-se do princípio de que objeto de coleção não se empresta, nem se dá, permutando-se, quando muito, e, ainda assim, no caso de haver duplicatas."

Oh, alguém me entende! =D

Adorei a crônica. Até me senti menos mal por ter na estante uma pilha bem grande de livros que ainda não li.
Obrigada, Carlos e Ana.


Luciano A. Santos disse...

Adorei o texto, como a gente se identifica! E caramba! E eu que batia no peito para me caracterizar como leitor, na verdade sou colecionador! Eu já dou como certo meu fracasso na empreitada de ler o que tenho, ainda mais quando paro pra pensar em tudo o que quero ler, e não demora muito para os livros me expulsarem do quarto, sem mais lugar aonde metê-los.

Mas também sou possessivo, não empresto sob nenhuma hipótese, e quando alguém aqui de casa lê primeiro ouve minhas instruções. Vai nos entender.

Rebeca Postigo disse...

Aninha!!!
Estava com saudade dos seus textos alheios...
Sempre cheios de reflexões...
Adorei!!!

Bjo, bjo!!!

Luiz Carlos Sahge disse...

Por ordem:
"A Negação da Morte", de Ernest Becker. Dois exemplares distintos emprestados a pessoas distintas que simplesmente se "esqueceram" de devolver.

"O Vento da Noite", de Emily Bronte, volume raro, emprestado para um (ex)amigo raro que o perdeu sabe-se lá onde. Perdi de uma tacada o livro e o amigo.

A lista segue, infelizmente, e infelizmente(2) ainda não aprendi a negar empréstimo de livros que eu penso merecedores de serem lidos pelo maior número de pessoas.


Mas esses dois acima citados, (três, se contar que perdi dois livros do Becker) são as perdas mais sofridas, especialmente o da Emily, cujo substituto não encontro de jeito nenhum.