O escritor trabalhando

Se os escritores pudessem trabalhar em fábricas grandes e bem ventiladas, como os fabricantes de charutos ou cuecas, cercados de colegas trocando mexericos  profissionais, sua labuta seria imensamente mais leve. Mas é essencial ao seu ofício que desempenhem suas tediosas e vexatórias operações a capella, o que faz com que os horrores da solidão se somem às suas outras fragilidades. Um escritor trabalhando está, contínua e inescapavelmente, na presença de si mesmo. Não há nada para entretê-lo ou consolá-lo. Toda vez que um pensamento vadio o invade, pega-o instantaneamente pela orelha, e toda vez que uma cãibra desce por sua perna, sacode-o como a mordida de um tigre. Estou para conhecer um escritor que não seja hipocondríaco. Com exceção dos médicos, que estão sempre doentes e com medo de morrer, os litterati são talvez os mais pródigos consumidores de pílulas e cirurgiões. Não consigo pensar em nenhum, entre minhas relações, que não se entupa diariamente dessas coisas ou que não entre regularmente na faca.

Deve ser óbvio que outros homens, mesmo entre a intelligentsia, não são acossados com tanta crueldade. Um juiz, com tinido da campainha em seus ouvidos, pode trabalhar sossegado, fingindo ouvir a voluptuosa retórica dos advogados. Um padre, ao celebrar sua pantomima, raramente é atacado por azia: o que ele tem a dizer já foi dito antes, e só os cretinos questionam. E um cirurgião, aplicando-se no mistério de sua arte, não sofre nenhum prejuízo profissional quando o invade o selvagem pensamento de que sua enfermeira, pensando bem, põe sua patroa no chinelo. Mas desafio qualquer um a escrever um poema competente ao som de campainhas, escrever uma crítica séria sofrendo de azia ou descrever uma plausível cena de amor com a cabeça cheia de fantasias amorosas. Impossível. O pobre litteratus se defronta com isso todas as vezes em que se senta à sua mesa de trabalho e cospe nas mãos de ansiedade. Assim que a porta se fecha, começa sua luta deprimente e já perdida com seu corpo e mente. 

Por que, então, homens e mulheres racionais se sujeitam a uma vocação tão bárbara e exaustiva? - porque há escritores relativamente inteligentes e esclarecidos, lembre-se, assim como há políticos relativamente honestos e até bispos. O que impede esses escritores de desertar, dedicando-se a outras ocupações menos onerosas e, aos olhos de seus semelhantes, mais respeitáveis? Uma das razões, acredito, é que o escritor, como qualquer outro suposto artista, é alguém em quem a vaidade normal dos outros homens é tão vastamente exagerada que ele não consegue retraí-la. Seu impulso arrebatador é rodopiar sobre seus semelhantes, batendo asas e emitindo gritos de desafio. Como isso é proibido pela polícia de todos os países civilizados, ele se conforma em pôr esses gritos no papel. É o que se chama de autoexpressão.

Nas confidências dos litterati, naturalmente, isso é sempre descrito como algo muito mais maduro e virtuoso. Alguns afirmam que são movidos pela ânsia de iluminar e salvar o mundo; outros alegam que seu motor é a paixão pela beleza. Ambas as teorias são rapidamente descartadas por um apelo aos fatos. O material produzido por 90% dos escritores, como deve parecer claro até aos cegos, tem tanto a ver com a iluminação do mundo quanto um rol de roupa. E não há mais beleza nele, nem sinal de um sentimento de beleza, do que se pode encontrar na decoração de um nightclub. O impulso para criar beleza, na realidade, é bem raro nos escritores e quase inexistente nos escritores mais jovens. Se às vezes ele surge, será como numa espécie de segunda reflexão. Léguas à sua frente, vem o anseio de ganhar dinheiro. E, depois deste, o anseio de fazer barulho. O impulso de criar beleza fica para trás. Os escritores, como classe, são extraordinariamente insensíveis a ela, e o fato se revela em sua habitual (em alguns casos, inacreditavelmente extensa) ignorância das outras artes. Eu não me atreveria a citar seis romancistas americanos capazes de reconhecer uma fuga sem embatucar. Os seis poetas capazes de um razoável arrazoado sobre as diferenças entre uma catedral gótica e um posto da Standard Oil. 

A coisa ainda vai mais longe. A maioria dos romancistas, em minha experiência, não sabe nada de poesia, assim como pouquíssimos poetas têm qualquer interesse pelas belezas da prosa. Quanto aos teatrólogos, três quartos deles ainda não foram informados da existência nem de uma nem de outra. Doi-me o calo revelar fatos tão vergonhosos e inconvenientes. Se eles deviam permanecer ocultos, a culpa só pode ser de minha paixão científica. Essa paixão, hoje, me pegou pela orelha. 

(H. L. Mencken)

Texto escrito em 1926 e retirado de "O livro dos insultos", uma seleção de crônicas do jornalista americano H.L. Mencken. Nem lembrava mais dele, escolhi ao abrir o livro. Boa descoberta, hein? Livro mais do que recomendado!

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